sábado, novembro 21, 2009

Diva (crônica)

Era a primeira vez que eu voltava ao Louvre depois de tantos anos.
Minha filha, Camila, conseguira me convencer de voltar a Paris depois que... Bon...

Não sou capaz de explicar, aos 65 anos, por que ainda me emociono diante da Vênus de Milo.

Camila só entendeu meu suspiro,
-Ah, Diva...
depois que lhe mostrei algumas páginas de um antigo diário de viagens que mantinha na casa de Paris. Tinha 20 anos quando escrevi essa lembrança mágica da minha juventude.

Minha filhinha ficou toda chorosa... Deve ser a gravidez.
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Paris, 23 de outubro de 19..

Meus pais sempre apoiaram minhas viagens para conhecer o mundo. Fui pro Egito ver Gizé de perto, Florida ver o Mickey, Inglaterra só pra atravessar a Abbey Road!
Não posso reclamar da  vida.
- Quer viajar no fim do ano, filhão? Fique com as médias todas acima de 8 que você vai.
E eu sempre ia. Mal sabiam que era por causa dela.
Culpa dela. Sempre por causa dela, tudo por causa dela!

Incrível como minhas memórias da infância são potencializadas conforme o tempo passa...
Por exemplo, os olhos dela, na minha mente, são duas esmeraldas cada vez mais cristalinas.
O cabelo dela da cor de granada, cada vez mais incandescente.
O que mais aumentava era o meu ódio pelo número 9!

Lembro quando minha prima mudou pra Paris ao se casar com um diplomata francês.
Fiz um escândalo para ir até o aeroporto com ela, no carro dela, no colo dela, com as minhas lágrimas sendo beijadas pela boca com o batom vermelho inesquecível dela e sentindo aquele perfume – "Ma Chérie" (minha querida) – que ficou gravado na minha mente, de tanto que ela me abraçou naquele dia.

(Devo confessar, timidamente, que todas as meninas com quem namorei até hoje só me conquistaram porque usavam esse mesmo perfume. Uma delas teria sido uma Senhora Osório em potencial, se não usasse “Bvulgari Black” – perfume de Mulher Alpha. Ciumenta demais para aceitar uma musa maior que ela. Continuei procurando o próximo "Ma Chérie". Morreria de vergonha se ela soubesse disso... )

- Não é para sempre, meu amor. - dizia -  Olha pra mim! Eu venho te visitar sempre que der. (E prometeu no meu ouvido) Vou te mandar uma carta por semana, de onde estiver!
De fato cumpriu as promessas e vinha passar 15 dias no Brasil sempre que dava. Também perdi as contas de quantos cartões postais eu recebia... Istambul, Londres, Cairo, Nova York, Vancouver, Pequin, Berlin, Veneza...
Acontece que essa lembrança do aeroporto me marcou!
Além do mais, matar a saudade com palavras, por mais doces que fossem, não se comparava a conversar com ela olhando naqueles olhos que ofuscavam qualquer presença além da dela.
Não é exagero, juro!

Mas hoje era o meu grande dia... Embarquei pelo mesmo portão que ela – o portão 9 – e pousei no mesmo Charles de Gaulle que ela... O ódio do número ia diminuindo conforme eu caminhava para fora do avião (por onde ela caminhara?), respirava aquele ar parisiense (que ela respirara?) e pegava um taxi (seria o mesmo taxista que atendeu a ela???).

Como minha professora de arte e história, tratou de arquitetar um quebra-cabeças melhor que o do Dan Brown – o qual, aliás, ela só me deixou ler porque era em inglês e depois de eu prometer ler uns 3 clássicos pra "compensar". Assim era ela.

Desculpe se afogo você nessas memórias sentimentais, leitor. Vou contar como isso começou, posso?

Sempre que eu ficava na minha avó, ela ia pra lá. Eu tinha 3 anos e as pessoas comentam coisas que, no meu inconsciente, eu já sei. Ela coloria minha infância de batom vermelho!
Chegava às 15h42, pontualmente, e me acordava da soneca da tarde com um beijo estalado e um sorriso que iluminava a tarde mais escura e mais chuvosa que possa ter existido.

Mas a lembrança consciente que eu tenho é ainda melhor.
Minha escola, quando eu tinha 5 anos, fez uma excursão à Pinacoteca do Estado, ao lado do Parque da Luz. Já foi à Pinacoteca, leitor?


Lembro-me de descer do ônibus da escola, fazer fila e seguir a “tia Fernanda”.

Eu tinha 80 cm de altura, 1 metro a menos que tenho hoje, então aquela escadaria parecia a entrada de Versailles! 
Eis que vejo, do lado direito, tal qual uma escultura romana, ela... minha diva...

Achei que era uma miragem. Mas quando ela sorriu e acenou pra mim do alto de sua bancada real – mais linda que uma reles musa pré-rafaelita -, parecia uma rainha me recebendo em seu castelo.

Essa imagem da Pinacoteca como um simples plano de fundo para minha deusa ruiva é a que vem à minha cabeça quando penso em arte.

Aprendi sobre a Irmandade pré-rafaelita com um dos postais dela, do MoMA. Continha uma charadinha que me guiou ao meu quadro preferido, me ensinando que ele fazia parte desse tal de pré-rafaelismo.
Tive a certeza absoluta de que Botticelli só o pintara porque viajou no tempo e também a viu no alto daquela escadaria como eu vi:

Tão linda... Majestosa...

De volta ao meu grande dia!
Assim que peguei um táxi no aeroporto, o chauffeur foi logo me passando um envelope branco. Soube na hora que era dela! Quem mais borrifaria “Ma Chérie” num envelope timbrado da Embaixada Francesa?

Havia a primeira pista de uma caçada. Segui seus enigmas e conheci alguns lugares de que ela falava ou escrevia com tanta paixão.

- Petiiit, você não pode perder quando vier a Paris!

Túmulo de Abelard et Helöise... Champs-Elysée... Cathédrale de Notre-Dame...
Senti um vazio imenso por ela não estar comigo nos passeios, mas cada lugar tinha uma pista nova. Não me importava em saber o destino final, contanto que me levasse a ela.

(Recordo-me de outra coisa engraçada. Obriguei minha mãe, aos 13 anos, a me colocar na Aliança Francesa. Imagina se ela esquece o português!? Até que eu terminasse o último avançado, tinha um pânico inexplicável de pensar nessa possibilidade...)

A penúltima pista estava impressa em um pergaminho.

"O Julgamento de Paris", do Rocca - que ela me mostrou no Masp e me enfeitiçou com a história da Guerra de Tróia!




Trouves la réponse que Pâris a donné, ton prix est son prix. Je t'attends... 
(Procure a resposta de Páris, seu prêmio é o prêmio dele. Estou esperando...)

Acabei de perceber que ainda não disse o nome dela. Mas não é difícil prever, visto a repetição de seu mito preferido. Páris teria o amor da mulher mais bela do mundo se escolhesse Afrodite como a "mais bela." Seu prêmio foi o amor da Helena de Tróia. O meu seria a Helena pré-rafaelita da Pinacoteca. Sim, minha prima também se chamava Helena!

- Onde eu acho uma Afrodite no meio de Paris? Ela não pode querer que eu vá para a Itália!
O chauffeur interrompeu meu raciocínio quando disse que ainda dava tempo de passar no Louvre, se eu quisesse.

- O Louvre, lógico!

Corri direto para a Vênus de Milo, sentindo o coração bater na boca.

"Cadê ela??? Será que cansou de esperar e já foi pra casa??? Será que eu me atrasei tanto assim com as pistas??? Será que estava ocupada demais pra me receber em Paris no meu primeiro dia?????"

Eu deveria saber que, como esposa de um diplomata, deveria ter mais coisas a fazer do que receber um priminho do interior...
Conformei-me com a ideia de que a última pista me daria o endereço da casa dela.

Estava na metade do corredor, exausto, quando vi um vestido vermelho passar esvoaçante e parar bem na frente da estátua.
Meu coração, antes na boca, até parou de bater.

Era a minha Vênus de Milo! Em carne, ossos, olhos de esmeralda e cabelos de granada, mais linda do que eu me lembrava.
Sorriu com a majestade da minha lembrança da Pinacoteca.
Abriu os braços com a elegância de uma rainha.
Disse num sussurro quase de francesa e os olhos calorosos de brasileira:
- Tu est arrivé!
(Você chegou!)

Recuperei o fôlego e corri para aquele abraço com o desespero que uma criança corre pros braços da mãe depois do primeiro dia de escola.
Controlei minha idolatria e disse simplesmente:

– Tu est ici!
(Você está aqui!)

Ela apontou pro meu peito e disse:

– Ah, petit, je suis toujours ici, n’est-ce pas?
(Ah, pequeno, estou sempre aqui, não é?)
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Eu mesmo, depois de reler o diário, me peguei respondendo:
- Oui... Toujours.

Minha filha veio sentar-se ao meu lado depois do jantar, no jardim de sua casa - que ficava no sétimo distrito de Paris, perto do Champ de Mars que elas tanto admiravam.
Eu olhava encantado para a Tour Eiffel, brilhando na noite parisiense. Outro hábito aprendido com minha prima Helena.

– Tenho duas coisas pra te dizer, papá. – Eu adorava seu sotaque de francesinha.
– Diga, chérie!
Bon... A primeira é que eu não teria te obrigado a vir a Paris se soubesse que você ia ficar triste. Desolée!
– Ah, não fiquei triste. Só emocionado. Obrigado por ter me obrigado! Merci beaucoup, petite.
– De verdade que não ficou triste?
– De verdade! Qual a outra coisa, filha?
– Hummmmmm... – ficou vermelha.
– Prometo que não conto pra ninguém!
Bon... É que eu... descobri o seu segredo!
– Segredo?

Ela sorriu.

Ah... A vida que se renova cada vez que ela sorri...

(Como era possível terem o mesmo sorriso?)

– Já sei porque você tem fugido tanto de Paris, seu velhinho sentimental!
Foi minha vez de ficar vermelho.
– Alors, nosso segredo, papá!
Ela me deixou sozinho, olhando pras luzes verdes da Tour enquanto lembrava da Helena...

Paris me deixava nostalgicamente feliz.

(O único destino que ela pode ter tido é estar no Olimpo, agora, balançando seus cabelos flamejantes enquanto ri e encanta os deuses com seu jeito impetuoso e suas histórias.)

Camila olha pra trás antes de entrar na sala novamente.

Papá?
– Oui?
Com a carência típica dos filhos caçulas e a voz embargada típica das mulheres grávidas:
– Eu pareço com ela?
– Quase, mon amour.
– Hummm...

Dou-lhe um beijo de pai coruja, na ponta do nariz, e confesso:

– Ela será eternamente a minha diva... A inspiração da minha vida...
– Que lindo, papá...
– Mas você... você é a minha própria vida. Minha vidinha com olhos de esmeralda.

Ela olhou para a Tour durante um tempo, fazendo companhia à minha solidão contemplativa.
Pôs mão na barriga de 3 meses - quase invisível, mas já seu pequeno orgulho -, e sorriu pra mim.
– Papá... Se for menina, vai se chamar Helena.

Depois disso, não disse mais nada e voltou correndo pra dentro de casa.



"Fecha os olhos e sente isso ao seu redor, petit. Tem uma vida inexplicável nessa nossa Paris, que sempre se renova! Você pode deixar Paris, mas ela nunca mais vai te deixar."

A nossa Paris.

Ah, Helena...

5 comentários:

  1. Sim, eu sei quem é a verdadeira Helena, a inspiradora musa ruiva.~E não, não é a Vênus de Milo!

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  2. Ah, Paris... Quem sabe um dia... E então tudo será...

    Acredite, fiz uma viagem onírica pelo universo maǵico da Paris que tanto quero ver.

    Xero juazeirense

    Pê Sousa

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  3. Que deliiicia de texto... consegui ver cada momento, cada lembrança!

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  4. Linda história.
    Provavelmente Camila e o pai passeariam pelo Jardim de Louxemburg, e depois iriam comer no Deauville, na Champs Elysée, ele Club Sandwich, ela Croque Madame.

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  5. Não morro de amores por Paris...

    Mas excelente texto.

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